CRÔNICA: Coisas que não dão para engolir e que me fazem dormir

Postado por: Trombetas | Marcadores: | às 11:25

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Fádia Calandrini

Não costumo ouvir conversas no ônibus quando vou trabalhar. Mentira. Pelo contrário, faço esforço para ouvir histórias em uma viagem de uma hora. Assim passa mais rápido as viagens de curvas que sempre me dão náuseas. Poderia ouvir música, ler um livro, mas não resisto a uma boa conversa matinal de estudantes e trabalhadores felizes em estar acordados às sete. Nem tento resistir.

Os assuntos quase semelhantes que ouço todos os dias fazem minhas manhãs parecerem sempre iguais. Reclames de sono, da chuva, do tempo seco, do frio e calor em excesso, da sexta-feira que nunca chega, e por aí vai. Hoje não me pareceu como os outros dias. O clichê fora quebrado por uma longa história de traição amorosa de uma moça na minha frente. Meu disfarce consistia em fingir que estava num profundo sono naquela poltrona tão desconfortável.

É como assistir alguma novela de Manoel Carlos. Logo me lembro das água-com-açúcar de Maneco: não há vilão nem mocinhos e sim pessoas. Não há o certo e errado, e sim situações que forçam a tolerância às idiossincrasias de personagens detestáveis. Por que então que esses espelhos da nossa realidade feitos nas novelas de Manoel Carlos me dão tanto sono?

Porque tudo que ele mostra eu já vivo todos os dias. No meu ônibus: indo trabalhar às sete e buscando distrações nas conversa alheias; no meu trabalho: a necessidade de sorrir quando não tenho vontade nem motivo; na faculdade: quando procuro me concentrar mesmo quando meu cansaço me vence. Já vivo no mundo de Manoel Carlos, onde não sou vilão nem mocinho, onde não sei o que é certo nem errado, onde a tolerância deve tomar conta de mim mesmo quando sou rodeado de personagens detestáveis.

Não me interessa assistir algo que já vivi durante todo o dia. Meus olhos amortecem imediatamente quando vejo, de verdade. Um texto bem escrito, atores globais extremamente talentosos não conseguem me despertar de sonhos muito mais excitantes e envolventes do que uma simples trama do cotidiano. Sonhos onde os nomes mudam e, com toda a certeza, não existe nenhuma Helena neles.

Minha rotina nunca muda: o Jornal Nacional me obriga por osmose emendar aos sonolentos capítulos de Maneco. Às 9 e dez já começo a assistir a novela de meus sonhos, parecidas com as tramas de A Usurpadora: o vilão é punido e o mocinho contemplado. Acordo já na hora e entrar no ônibus onde tenho que engolir os reclames de sempre. “Nossa, tá frio né?!”, “Que calor hoje!”, “Que chuva chata!”, “Que tempo seco!”, “Por que a sexta-feira não chega?!”. E de vez em quando me surpreendo com histórias que acrescentam mais no meu dia o que Viver a Vida, Páginas da Vida, Coisas da Vida, Chatices da Vida.

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